Em 1988, o Rio de Janeiro acordou
tomado por milhares de pessoas. Militares ocuparam o centro para vigiar o
acontecimento, mas acabaram destruindo palanques em frente à Central do Brasil,
prenderam ativistas que chegavam dos subúrbios e da Baixada Fluminense e
tentavam destruir faixas e cartazes que as pessoas levantavam.
O protesto acontecia nas vésperas
do centenário da abolição da escravatura e estava ali exatamente para revelar a
farsa que essa abolição significava. Quem dera fosse apenas um problema do
descaso do governo com a população preta. Ele foi além e trabalhou com ideais
eugenistas, posteriormente transformados em leis para exterminar a descendência
africana do país.
Um dos nomes que liderou essa
marcha foi Abdias Nascimento, primeiro negro a chegar à câmara como deputado
federal. Ele exaltou a todos com seu discurso:
“É a primeira vez, após a
abolição da escravatura, que nós apresentamos, em um ato memorável como este, a
nossa maturidade política, a consciência dos nossos direitos irreversíveis. Nós
estamos aqui não para mendigar, não para estender a nossa mão para a
mendicância da classe dirigente. A nossa mão está estendida à solidariedade,
mas essa solidariedade tem um preço, e é o preço que a sociedade dominante tem
que pagar”.
Em 2003, Abdias lutou pela
criação do Dia da Consciência Negra, que agora é celebrada na data de 20 de
novembro, em memória ao dia do assassinato de Zumbi dos Palmares. Essa conexão
entre o passado da luta negra e aquele momento pós-governo militar explica
muito sobre a importância da data e a sua relação com o movimento negro.
O que é o movimento negro
Quando discutimos na internet, a
impressão é que existe um grande movimento com regras rígidas, antagonista dos
brancos e que busca uma divisão racial no Brasil – essa é a principal falácia
levantada pelos militares, os mesmos que estavam coibindo a marcha em 1988 com
a desculpa que aquele protesto estaria depreciando a imagem do Duque de Caxias, pasmem.
Para destruir preconceitos e
sofismas é importante entender que o movimento negro não é um único movimento.
Assim como a África é um continente repleto de realidades diferentes, etnias,
culturas e formas de lutar distintas, o movimento negro no Brasil e no mundo
tem encontrado faces múltiplas. Porém, todas elas têm um único direcionamento:
a luta contra o racismo e em favor da população negra por meio da reparação
histórica e de políticas afirmativas.
Joel Rufino dos Santos, escritor
e um dos maiores nomes brasileiros em estudos de culturas africanas, define o
movimento negro assim:
“Todas as entidades, de qualquer
natureza, e todas as ações, de qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas
que visavam à autodefesa física e cultural do negro], fundadas e promovidas por
pretos e negros (...) Entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por
exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como
“clubes de negros”], artísticas [como os inúmeros grupos de dança, capoeira,
teatro, poesia], culturais [como os diversos “centros de pesquisa”] e políticas
[como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização política, de
protesto anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de
movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda essa complexa
dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui
movimento negro."
Particularmente, entendo a
Consciência Negra como o reconhecimento de toda a luta ancestral para a
sobrevivência e o “resgate da nossa dignidade humana, da nossa história e dos
nossos valores culturais” – como evocado pelo próprio Abdias Nascimento. Então,
os grupos de negros que reconhecem a desigualdade racial e lutam contra ela são
os considerados parte do movimento negro.
Na história do Brasil, alguns
grupos liderados por negros foram patrocinados por oligarquias e governos, mas
como um subterfúgio, uma verdadeira manobra política evasiva para dizer ao povo
“não somos tão maus assim, tampouco racistas, tenho até negros aqui no
governo”.
Em 1812, por exemplo, a coroa
patrocinou o surgimento de uma associação negra, a Companhia de Pretos de
Pernambuco, como uma resposta às rebeliões que aconteceram na época. Também
aconteceu no Brasil um movimento que mitificou a princesa Isabel, o Isabelismo
– ele defendia a volta da monarquia e considerava a princesa como "A
Redentora". Apesar de um aparente protagonismo negro, possivelmente seus
ideais colocariam o negro numa situação de inferioridade na sociedade.
Os primeiros movimentos no
Brasil
Não há como deixar de reconhecer
os quilombos como as primeiras grandes representações do movimento negro
brasileiro. O sociólogo Clóvis Moura afirmou que onde quer que a escravidão
existisse, o negro marrom [rebeldes livres, como quilombolas] aparecia como sinal
de rebeldia permanente contra o sistema que o escravizava. Foram várias
lideranças nessa época, Zacimba, Tereza de Benguela, Manuel Congo e o Zumbi que
se tornou o mais conhecido da nossa história.
Palmares resistiu por quase um
século, em meio a inúmeras tentativas de invasão e ataques brutais. As
histórias sobre Zumbi haviam se espalhado e inflado o coração de outros negros.
Ele era um símbolo tão forte que a Coroa Portuguesa tentou profaná-lo,
arrastando sua cabeça para ser espetada numa lança e exibida durante seis dias
de comemoração a seu assassinato. Essa tragédia não foi capaz de silenciar o
movimento negro, que sempre voltou com outros líderes em outras épocas.
Em 1798, inspirados pelos ideais
iluministas, pela Inconfidência Mineira e impulsionados também pelas histórias
da revolta do Haiti, explodiu na Bahia um movimento popular anticolonialista
conhecido como Revolta dos Búzios ou (mais popularmente) Conjuração Baiana.
Diferente da Inconfidência
Mineira, a revolta baiana desejava a abolição da escravatura e o término do
preconceito racial. Tinha entre seus líderes vários negros escravos e libertos,
como Lucas Dantas do Amorin Torres e Manoel Faustino do Santos Lira.
Alguns revoltosos espalharam
cartas e panfletos na cidade, fato que chamou a atenção das autoridades e
motivou investigações com uma dura repressão. À base de ameaças, várias pessoas
delataram seus companheiros, levando a morte dos seus líderes. Partes
dilaceradas de seus corpos foram exibidas durante cinco dias e espalhadas pela
cidade – que chegou a ser tomada por urubus. A sentença ainda declarou seus
nomes e memórias infames até a terceira geração.
No governo militar, contra a
mentira da democracia racial
Após a abolição da escravatura e
a queima dos registros históricos sobre a escravidão, as elites brancas no
Brasil patrocinaram um movimento de negação intensa do racismo, promovendo a
produção de literatura, música e todo tipo de arte que escondesse o seu passado
criminoso.
Esse plano tinha um ponto cego,
que é a vida do próprio negro. Se o país fosse o paraíso racial que vendia
internacionalmente, não haveria necessidade de reivindicar mais nada. Porém o
racismo dos escravagistas não foi abolido com a Lei Áurea. Os filhos de
fazendeiros e donos de engenhos estavam vivos e propagando sua moral miserável.
No meio desse tumulto, grupos de
intelectuais negros voltaram a se organizar e fundaram em 1931 a Frente Negra
Brasileira. Eles se tornaram a principal referência de luta contra o racismo
após a abolição e reivindicavam, principalmente, o fim da discriminação de cor
e raça que acontecia em órgãos públicos e estabelecimentos privados. Os
esforços do movimento negro dessa época levaram a criação da primeira lei que
combatia o racismo no país, a Lei Afonso Arinos, em 1951.
Infelizmente, a Frente Negra não
sobreviveu para apreciar essa vitória. Com o golpe militar que instituiu o
Estado Novo em 1937, Getúlio Vargas, embebido das ideologias eugenistas,
encontrou na ideologia da democracia racial a mentira perfeita para findar
qualquer expressão cultural étnica que fosse contra a “identidade nacional” que
eles estavam pregando (criadas pelo movimento eugenista e difundida até os dias
de hoje em publicações do Clube Militar).
Teatros, partidos, jornais e
muitas outras expressões negras foram caçadas e destituídas nesse período em
nome da tal democracia racial – basicamente fundada na ideia de que o Brasil
era tão mestiço que o racismo aqui era impossível de acontecer.
Enquanto o governo militar
insistia no negacionismo, o racismo continuou acontecendo e isso continuou a
mobilizar o movimento negro.
Em 1978, Robson Silveira da Luz,
um feirante, foi acusado de roubar frutas. Levado por policiais, o jovem negro
de 27 anos acabou torturado e morto. Foi um dos estopins para que nomes como
Lélia Gonzalez, Hélio Santos e Abdias Nascimento reunissem o Movimento Negro
Unificado (MNU), que sobreviveu ao governo militar em meio a várias
perseguições e contra a propaganda que queria vender um país sem preconceitos
para a população.
Quando a marcha contra a farsa da
abolição (citada no início deste texto), aconteceu em 1988 foi como a ebulição
de tudo o que estava sendo preparado pelo movimento negro no período da
ditadura. Foi também o ano em que, finalmente, a Constituição compreendeu que
existia o racismo e ele deveria ser combatido.
Hoje, existem vários grupos,
ONGs, instituições e movimentações partidárias que fazem parte do movimento
negro. Para Silvia Nascimento, jornalista e produtora de conteúdo com foco na
comunidade negra há 18 anos, a maior diferença entre o movimento negro do
passado e o de agora é a liberdade. "Nossa geração tem avós que estiveram
muito próximo da escravidão. Com certeza isso reflete na sua mobilização
política. Você tem medo de cerceamentos, você tem medo de risco de vida e de
danos financeiros por se posicionar politicamente”, afirma.
Eu nasci em 1986, em um país que
não criminalizava o racismo, um país em que a Constituição não compreendia
negros como cidadãos brasileiros, apenas fingia que todo mundo entendeu que
“agora negro é gente”. Ter a consciência negra não é entender minha existência
única como um negro nesse país e minha liberdade para fazer o que quiser, mas,
sim, me conectar com esse passado, com esses nomes e essas lutas que me deram a
liberdade de estar aqui escrevendo para vocês.
É olhar com os mesmos olhos dos
líderes abolicionistas e do mestre Abdias Nascimento para a história
afro-brasileira. Só assim fará sentido dizer quando chegar o dia 20 de
Novembro: viva Zumbi!